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California Zephyr: atravessar os Estados Unidos de comboio

​O post que todos esperavam chegou. Não? Desculpem, pensei que o objetivo único de ler um blogue que fala de viagens era saber tudo sobre o California Zephyr.

 

Passemos à frente.

 

Em abril de 2017, depois de quatro dias em Boston e outros tantos em Chicago, embarcámos no California Zephyr: iam ser dois dias e meio num comboio para atravessar os Estados Unidos até São Francisco (ou quase).

Ó pra ele todo contente a andar de comboio

O Rui já tinha ouvido falar do mítico comboio que era uma espécie de "route 66" ferroviária há mais tempo, mas eu só tinha sabido da existência da coisa um ano antes e desde essa altura, claro, tinha pesquisado freneticamente tudo o que podia sobre o assunto.​ ​Antes de embarcar já tinha visto 10 horas de vídeos no youtube, tinha lido todas as dicas e analisado todas as fotografias para tentar perceber como era a nossa "roomette", onde era o melhor spot para fotografias e, coisa muito importante, o que é que se comia no comboio.

 

A viagem no California Zephyr pode fazer-se inteira, de Chicago a Emeryville, como nós fizemos, aos bocados, ou só uma parte. Serve como atração turística em si, como forma de chegar a outros destinos populares ou como modo de transporte - um dos nossos companheiros de viagem, Ed, estava a voltar a casa, em São Francisco, depois de ter feito a "Med School" em Nova Iorque​: ​o comboio ficava mais barato do que o avião, sobretudo tendo em conta a bagagem.

 

Há ainda outra coisa que influencia muito a viagem que se tem: a "classe" em que se viaja. Ao comprar o bilhete para o California Zephyr tem-se, naturalmente, direito a um lugar sentado em classe económica. Mas para quem faz a viagem seguida, ou tem troços noturnos, pode valer a pena reservar uma cabine. As "roomettes", onde ficámos, são as mais baratas: um compartimento privado, com duas cadeiras frente a frente​ (​com uma janela só para os ocupantes​) ​que à noite se transformam em duas camas tipo beliche. Depois, há, claro, outras opções: para três ou quatro ocupantes, com casa de banho privada, you name it.

 

Além disso, as cabines vêm com um bónus: todas as refeições estão incluídas. Para vos poupar o trabalho sobre o que são "todas as refeições" (o alvo de uma pesquisa intensiva da minha parte), posso desde já dizer que são o pequeno-almoço, o almoço e o jantar. Não, não há lanche. Mas estão dentro de um comboio, não se vão mexer muito, e as refeições são à americana. Mesmo eu, que me conheço e por isso mesmo levei quantidades anormais de bolachas para a fome do meio da tarde, acabei por não comer nada extra.

Paisagens do Colorado

Logística explicada, vamos então à experiência: afinal o que se faz num comboio durante 51 horas? Spoiler alert: não se lê assim tanto.

 

De Chicago a Denver

 

Preparámo-nos para a viagem com dois objetivos: ver tudo o que pudéssemos e não nos aborrecermos de morte. O Rui fez o download de 30 horas de podcasts e afins, eu levei três ou quatro livros na mala (a que vai connosco durante a viagem), tínhamos o nosso abençoado Monopoly Deal e... ficou praticamente tudo sem uso.

 

O comboio partia às duas da tarde de terça-feira (há comboios diários em ambas as direções). Como tínhamos reservado o nosso pseudo-quartinho, t​ivemos​ direito a entrar no lounge da Amtrak - a companhia ferroviária americana - na Union Station, em Chicago. Aproveitámos para ir mais cedo, recordar momentos de cinema, deixar as malas no lounge e tratarmos do último almoço antes de partir, no Five Guys.

 

Voltámos e aproveitámos mais uns minutos de Wifi (não há nada disso no California Zephyr, amigos!) e as bebidas oferecidas no lounge. Algum tempo antes da hora marcada para a partida, fomos chamados para a plataforma. Embarcámos, conhecemos o responsável pela nossa carruagem e fomos à aventura.

A entrada para as plataformas

O primeiro dia (de luz) no California Zephyr, quando se faz Este-Oeste - que, já agora, é a melhor forma de o fazer, pelos horários porreiros e por aproveitarem a diferença horária todos os dias -, não tem muito para ver. As paisagens do Ilinóis são campos e campos e campos de cultivo. Mas, claro, a excitação é mais que muita.

 

Para nós, as primeiras horas foram passadas numa mistura de tentar explorar o comboio, garantir que não perdíamos nada do que se passava do lado de fora da janela (como é que sabemos quando é que uma coisa super excitante vai chegar?) e, eventualmente, comer. O ponto mais interessante daquele primeiro dia foi atravessar o Mississippi e passar a fronteira para o Iowa.

 

As refeições no CZ são feitas em mesas de quatro e, se no vosso grupo houver menos do que isso, vão ser sentados com alguém. Não tenham dúvidas. Esse era um dos maiores medos que tínhamos: somos people watchers, não people talkers. A não ser que seja preciso, não falamos com ninguém nas nossas viagens - ou não falávamos, até nos vermos sentados com a Megan e a Kirstin.

 

Tenho de confessar: o jantar começou tímido. Tínhamos marcado mesa para as 19h00 e o sol estava a pôr-se, o que nos convidava mais a olhar pela janela para apreciar o espetáculo do que fazer conversa da treta com desconhecidas. As primeiras palavras que trocámos, depois do básico olá, não foram grande coisa. Foi preciso chegar um dos empregados do vagão-restaurante para recolher os nossos pedidos para as coisas mudarem.

O primeiro pôr-do-sol

Às três águas que tinham sido pedidas juntou-se "uma água com limão", e a galhofa começou aí. A Kirstin era a nossa princesa e, a partir do momento em que já todos ríamos, a conversa fluiu. Falámos do que estávamos ali a fazer, de como era a nossa vida fora do comboio, do que gostávamos e do que nos tinha marcado. Para as duas americanas à nossa frente, o Zephyr estava a servir para voltar a casa, em Salt Lake City e Omaha, depois de viagens de trabalho.

 

Já não me lembro do que foi o jantar; lembro-me que nenhum de nós chegou a pedir sobremesa antes de, perto das dez da noite, os empregados nos "expulsarem" gentilmente, e com sorrisos na cara, da carruagem. "A conversa pode continuar nos vossos lugares."

 

Não continuou - afinal, havia um nascer do sol para ver no dia seguinte -, mas não acabou aí. A Kirstin ia sair do comboio daí a algumas horas, e trocámos endereços de email. A Megan ainda vimos mais algumas vezes - apesar de não nos termos voltado a cruzar à hora da refeição - e acabou por, um mês e meio mais tarde, passar uma semana em nossa casa. Era o início auspicioso de uma viagem que prometia ser diferente de todas as outras - e foi mesmo.

 

De Denver a Salt Lake City

 

A primeira noite passada a bordo do comboio não foi a mais confortável, mas talvez seja porque estava no beliche de cima e tenho vertigens. Nunca me senti em perigo de cair dali abaixo (até porque há umas fitas giras, tipo cinto de segurança, para o evitar), mas não podemos deixar de adormecer a pensar que temos 60 centímetros de largura para nos mexermos.

 

De qualquer forma, a noite não ia ser longa: queríamos acordar a tempo de ver o nascer do sol na carruagem panorâmica, e foi o que fizemos. Acordámos, vestimo-nos e, pouco depois das seis e meia da manhã, tomámos os nossos lugares. As fotografias não fazem jus ao que vimos - culpem a inépcia para essa arte, ou a sujidade dos vidros, ou ainda o movimento do comboio. Estávamos a entrar no Colorado e a aproximar-nos das Montanhas Rochosas, por isso a paisagem era radicalmente diferente da do dia anterior.

O nascer do sol

Depois de nascer o sol, seguimos para o pequeno-almoço, onde fomos sentados com um casal que só consigo descrever como "muito americano". Infelizmente, desta vez, isso não quis dizer simpático - comemos, falámos da viagem que fizeram a Portugal (visitaram Fátima e acharam o país muito caro, já agora) e, em menos de nada, ficámos sozinhos na mesa, já que iam sair em Denver, onde acabávamos de parar.

 

​A​proveitámos a paragem mais longa, para abastecimento do comboio, para sair também - vimos a estação, a rua principal e voltámos para dentro, cheios de frio: estávamos vestidos para o ambiente aquecido das carruagens, e não para o tempo de altitude das montanhas. A partir daqui, diziam-nos, começava a parte mais bonita da nossa viagem, e queríamos preparar-nos.

 

Quando o comboio saiu de Denver, estávamos a entrar na carruagem panorâmica, envidraçada a toda a volta, que é o melhor sítio para se estar numa viagem destas. Devíamos estar a dizer qualquer coisa não muito interessante, quando uma cadeira à nossa frente rodou na nossa direção: "Are you Portuguese?!".

 

Sim, somos portugueses. E fomos reconhecidos por termos dito a palavra "três", vá-se lá saber como, por uma americana de marido madeirense. Estava, com a filha, a caminho de uma estância termal, para passar uns dias, e era tão expansiva que, em menos de nada, já toda a nossa metade da carruagem falava alegremente sobre "o Senhor Peixe" (o sogro) e partilhava doces e bolachas. Havia também o rapaz que sabia umas palavras em português porque tinha tido "umas namoradas brasileiras", Ed, o estudante de medicina a caminho de casa, e ainda o pai e filha polacos, que viemos a conhecer melhor ao jantar.

 

A verdade é que a partilha daquele momento, em que finalmente começámos a seguir ao longo do rio e a neve começou a dar um ar de sua graça, tornou tudo ainda melhor. Estávamos ali todos juntos, basicamente, porque queríamos ver tudo o que pudéssemos, e o espírito de camaradagem transformou-nos num grupo de amigos que fazia a viagem junto.

A primeira neve

A paisagem começou a ficar cada vez mais impressionante, e inacessível. "Aqui só se passa de comboio ou de barco", disseram-nos várias vezes ao longo do percurso. O Colorado estava a mostrar-se no seu melhor. Ao final da tarde, já depois de termos aproveitado um tempo morto ao nível da paisagem para tomar um banhinho (fazer isso enquanto o comboio anda não é nada fácil, sobretudo num compartimento tão pequeno) deu lugar ao Utah. A paisagem é radicalmente diferente: o branco dá lugar ao laranja e as montanhas são substituídas por desfiladeiros e enormes planícies.

 

Naquela terra de ninguém – que inclui a passagem por uma cidade-fantasma, cheia de rouloutes e casas pré-fabricadas abandonadas – não se vê mais do que uma estrada sempre em reta, utilizada na sua maioria por camiões que transportam mercadorias. Por esta altura, paramos durante alguns minutos em Grand Junction, uma terriola no meio do nada que nos oferece pouco mais do que uma loja turística, alimentada pelas paragens do nosso comboio, e a ideia de quão afastados do mundo como o conhecemos aquelas pessoas vivem.

 

O regresso ao comboio foi feito já com o pôr-do-sol a caminho. Depois de termos tido um almoço mais estranho com um canadiano pouco falador, não estávamos em pulgas para jantar, mas o estômago falou mais forte.

Utah

Bela altura escolhemos. Ficámos sentados com os tais pai e filha polacos, com quem, apesar de tudo, não tínhamos conversado muito. Tínhamos percebido que, ao longo da viagem, a filha ia traduzindo o que era dito - e foi isso também que fez durante o jantar. O pai é um apaixonado por comboios e, depois de uma série de viagens - que incluíram o Transiberiano -, estava finalmente a concretizar o sonho de atravessar os Estados Unidos no California Zephyr.

 

Éramos dos poucos europeus na carruagem e trocámos histórias. Quisemos saber mais sobre a Polónia, daquela família de Lodz, e fomos surpreendidos com a forma tímida como nos aconselharam um roteiro de coisas a fazer caso escolhêssemos Varsóvia ou Cracóvia.

 

«Dois dias para Cracóvia, e mais um dia para... bem, temos um sítio, Oświęcim, carregado de história, onde os alemães tiveram um campo para onde levaram muitas pessoas, um campo de concentração. Se isso vos interessar, o meu pai recomenda que o façam no último dia de viagem, porque vão a ficar a pensar no assunto durante dias, semanas». Foi um momento que nos marcou. Antes de nos dizer isto, os dois pareceram debater sobre se deviam ou não fazer esta recomendação, se seria apropriado. A própria forma como nos disse, como se a falar de algo que ignorássemos, marcou.

 

Estávamos a falar d​e Auschwitz com outro nome [ou mesmo: com o seu nome], como se nunca tivéssemos ouvido falar deste sítio.

 

De Salt Lake a Emeryville

 

Nova manhã, novo nascer do sol. Como ​ganhamos uma hora a cada noite que passa, é sempre relativamente ​fácil acordar a horas de ver as paisagens mais deslumbrantes na penumbra da manhã - não é tão fácil tirar fotografias.

 

Descobrimos que, por causa das cortinas, conseguíamos melhores imagens na nossa cabine privada, por isso acabámos por passar este dia, como é nosso costume, mais sozinhos. O cansaço também se acumulava. Mais do que nunca estávamos a viver em função do dia solar. As paisagens ​eram​ tão impressionantes que sentimos uma pressão absurda para não tirar os olhos da janela desde que o sol nasc​ia​ até ao segundo em que se p​unha​. Mais tarde ou mais cedo, a fatura ​havia de aparecer.

 

Era um novo dia, uma paisagem radicalmente diferente e, logo pela manhã, um novo estado: tínhamos entrado na Califórnia e a Serra Nevada vestiu-se a rigor. Depois de meses quase sem chuva, os últimos dias tinham tido direito a um nevão que tinha tornado tudo uma espécie de parque encantado: nós estávamos, sem dúvida, enfeitiçados com as imagens. A manhã passou entre vários tons de branco e paragens em terriolas californianas.

Serra Nevada

A aproximação a Emeryville, ainda com uma paragem por Sacramento, promoveu uma adaptação gradual à realidade. Voltámos a sentir que estávamos num meio urbano e das paisagens de tirar a respiração restavam só as memórias… as fotografias ​continuavam sem fazer jus a instantes de tanta beleza.

 

A viagem vale a pena. As vistas são fenomenais. ​M​as também são as histórias das pessoas - quase provocadas a cada refeição devido à forma como somos sentados à mesa - que deixam marca. Da “princesa” de Omaha, Nebraska, com idade para ser avó, que participou numa liga de hóquei feminino e viaja regularmente para uma terriola no Iowa para acompanhar o desenvolvimento de uma casa de sobriedade que é gerida pelos próprios viciados e que tem uma taxa de sucesso superior a 90%; da Megan de Salt Lake City que trabalhou com a equipa de futebol (soccer) da cidade e com a equipa ​olímpica ​de patinagem de velocidade dos EUA; da mãe e filha do Illinois que reagem assim que ouvem a palavra "três”; do canadiano do Ottawa que parece contrariado e fala demasiado baixo para ser interessante; do pai e filha polacos que estão a cumprir um sonho.

 

Mas também do casal britânico a caminho de São Francisco para um casamento; do natural de São Francisco e filho de japon​eses​ a acabar o curso de medicina; do "hiker" que entrou em Denver vindo das Rocky Mountains e que falava português à conta de «umas» namoradas brasileiras; e dos americanos reformados que se centram na história de uma portuguesa e ficam fascinados com o que Portugal oferece, com o melhor do calor dos Estados Unidos sem o fantasma dos furacões ou terramotos.

 

O melhor elogio que se pode fazer ao California Zephyr? Soube a pouco. Tão a pouco que a primeira coisa​ que fizemos na cama do hotel em São Francisco foi esboçar uma rota que permita fazer, de comboio, Nova Iorque-Nova Orleães-Texas-Los Angeles-Seattle-Chicago-Nova Iorque. Por que não?